21.9.13

"Sobre a Praxe"

A Praxe é ingrata, ponto assente.
Não há pastilhas que atem de novo as minhas cordas vocais.
Não há água que reponha o que camisa absorveu ao longo de um dia.
Não há gelo que acalme a dor nas plantas dos pés, que aguentaram o peso, de sol nascer a sol pôr.
Não há alimento que encha o estômago, negligenciado a troco de mais um jogo.
Não há Santa Paciência que beatifique as barbaridades que oiço, mesmo nas perguntas mais simples.
"Não há almofada que passe mais tempo encostada à cara do que a minha própria capa.

Fiz noitadas, preparei equipas, equipamentos, o traje, trajes, figurinos e adereços, músicas, gritos, pinturas, a mente, o corpo. Dispendi sono, calorias, muitas calorias, voz, tempo, amigos, criatividade e imaginação, sola, mais calorias, saúde, dinheiro, interesses pessoais, férias.

Mas há algo que paga tudo isto.

Os primeiros sinais são simples. O sorriso cúmplice quando as flexões se tornam insuportáveis. A reposta soprada ao ouvido, ao colega recém-chegado. As gargantas em esforço a defenderem a sua futura formação. Os castigos em comunidade, a criatividade conjunta e o espírito de família, crescendo visivelmente a olho nu por cada dia que passa. A admiração por quem deles cuida. A humildade e veracidade com que se despem de quaisquer personagens, deixam o fato em casa, e vêm ser eles, desconhecidos entre desconhecidos, únicos no meio de únicos. A chegada com um sorriso na cara, com a pele preparada para servir mais uma vez de tela, e a despedida, já sem forças no corpo, com olhos cansados de tantas memórias criadas.

Nos dias seguintes vejo uma mesa preenchida de caras limpas e esfregadas, a trocar contactos. A refeição, momento de eleição para a partilha, serve para discutir os acontecimentos recentes. O início das aulas provoca o início das conversas paralelas e da troca de apontamentos. Começam também os planos conjuntos, extracurriculares. Mas não tarda os copos são trocados por sebentas e brinda-se, em vez dos comuns clichés, aos nove e meios da pauta.

O melhor não vemos nós, já longe. O produto final.
As caras que aguentaram guaches e batons não aguentam as lágrimas, na despedida. A força ganha nas flexões serve para apertar os Amigos, no dia do até já. A voz, alimentada com hinos e cânticos, falha no derradeiro discurso. As memórias, bem estimadas e catalogadas, irrompem simultaneamente em cada rosto conhecido que se vê. O corpo, que foi emprestado para encarnar um qualquer personagem fictício, teima em não ser nosso e a querer voltar para trás. Os olhos, esses, continuam em baixo, para conter o impulso emotivo.

O vínculo de praxe, que condensa três semanas em três dias, dá o seu fruto. Muitos deles encontraram amigos para o resto da vida. Encontram família afastada e alguns conterrâneos. Encontram semelhantes. Talvez o padrinho de casamento, o companheiro artístico ou o par desportista. Alguns encontraram a mulher ou o marido. Provavelmente, já não vou saber disso.

Sei que vi muitos sapatos pretos no meu primeiro ano. Hoje, quando praxo, olho primeiro para baixo, para os meus."

Miguel Ponte


Arrepiei-me tanto, mas tanto! E (pelo menos por hoje) não acrescento mais nada a este assunto, acho que está tudo dito.

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